
Por Pedro Lima, Líder de Engenharia Digital, e Rafael Cesário, Gerente de Projetos da área de Hidroenergia da Tractebel Brasil, Chile e Canadá
As usinas hidrelétricas continuam sendo a espinha dorsal da geração elétrica no Brasil, com cerca de 109 GW de potência instalada atualmente. Contudo, grande parte das usinas hidrelétricas integradas ao Sistema Interligado Nacional (SIN), sob a gestão do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), já acumulam décadas de operação, o que resulta em desgaste de equipamentos, diminuição da confiabilidade e segurança, além de perda de eficiência. Desta forma, diversas usinas vêm passando por processos de modernização nos últimos anos.
Além da modernização destas usinas, a ampliação da capacidade das hidrelétricas tem ganhado relevância estratégica também do ponto de vista regulatório. Um exemplo disso é o Leilão de Reserva de Capacidade na forma de Potência (LRCAP), planejado pelo Ministério de Minas e Energia para 2025. Esse leilão, inicialmente agendado para junho, pretende contratar a ampliação da potência instalada em usinas hidrelétricas já construídas, por meio da instalação de Unidades Geradoras adicionais nos chamados "poços vazios". Com essa iniciativa, o governo busca estimular investimentos privados para aumentar a eficiência e segurança energética sem precisar erguer novas barragens.
Embora temporariamente suspenso devido a questões jurídicas, que exigiram ajustes no edital, o leilão permanece como prioridade do setor energético brasileiro para este ano. Espera-se que um novo edital seja publicado em breve.
Estudos recentes indicam um grande potencial inexplorado de aumento de capacidade nas hidrelétricas brasileiras por meio de repotenciação, modernização e projetos associados. Segundo a Associação Brasileira de Empresas Geradoras de Energia Elétrica (Abrage), as hidrelétricas poderiam aumentar sua capacidade em 86,4 GW, um salto de 79% sobre a potência atual. Desse montante, 7,4 GW viriam da adição de novas Unidades Geradoras em espaços físicos já existentes de doze usinas, além da ampliação de outras duas hidrelétricas. Outros 11 GW seriam provenientes da repotenciação e modernização de usinas já operacionais. Dos 68 GW restantes, 30 GW corresponderiam à viabilização de quarenta e dois novos projetos de hidrelétricas, que aguardam licenciamento ambiental prévio, enquanto 38 GW seriam provenientes da adoção de usinas reversíveis, seja em hidrelétricas existentes ou novas. Importante ressaltar que essas projeções consideram apenas usinas de grande porte (>30 MW).
Um dos exemplos dessa iniciativa é a modernização da UHE Jaguara, de 424 MW, localizada entre Minas Gerais e São Paulo. Construída em 1971, a usina tem um aporte em torno de R$ 500 milhões para a modernização das quatro unidades geradoras existentes. Adicionalmente, a UHE Jaguara está aprovada para participar do Leilão de Reserva de Capacidade aumentando sua capacidade em 232,5 MW através de duas novas unidades geradoras.
Outro exemplo é a UHE São Simão, de 1.710 MW, que vêm passando por um importante processo de modernização. A usina está localizada no rio Paranaíba, entre Goiás e Minas Gerais e foi construída em 1978. As obras envolvem a modernização das seis unidades geradoras, com tecnologia moderna de automação, e novos componentes eletromecânicos. A UHE São Simão também está apta para participar do LRCAP para ampliar sua capacidade total para 2.020 MW através da instalação de mais uma unidade geradora.
Engenharia digital: a resposta estratégica
Alguns desafios crescentes na preparação de estudos técnicos para leilões de repotenciação de hidrelétricas — em sua maioria estruturas complexas com décadas de operação — são a ausência de documentação atualizada, o que gera incertezas técnicas, além de prazos apertados.
Nesse cenário, a engenharia digital surge como resposta eficiente e estratégica, se consolidando como a ponte entre o diagnóstico preciso e a tomada de decisão eficiente.
Soluções como escaneamento a laser, Gaussian Splatting, plantas virtuais (Matterport) e a metodologia BIM são aplicadas para se obter uma representação fiel da estrutura como ela é hoje, possibilitando a investigação de cada detalhe técnico necessário. A partir daí, são criados modelos digitais tridimensionais inteligentes, que integram em seus metadados informações técnicas, operacionais e espaciais em um único ambiente comum de dados. Também é utilizada inteligência artificial em análise de dados, imersão nos modelos em óculos de realidade virtual e ambientes colaborativos em nuvem, promovendo um fluxo contínuo entre estudo, projeto e execução.
Esses modelos são a base para a elaboração dos estudos de engenharia que os leilões precisam, pois garantem maior assertividade na definição de escopos, na avaliação de viabilidade técnica e na mitigação de riscos associados aos empreendimentos. O resultado é a criação de gêmeos digitais permanentes, que também se tornam ativos estratégicos ao longo da construção, operação e manutenção dos empreendimentos.
É importante ressaltar que é fundamental ir além do uso de tecnologias prontas. Para um projeto ser bem-sucedido, é necessário desenvolver estratégias personalizadas, avaliando caso a caso quais ferramentas devem ser utilizadas e quais benefícios reais podem ser obtidos. A lógica não é apenas digitalizar — é digitalizar com propósito e inteligência, assegurando ganho de produtividade, rastreabilidade, desempenho e redução de incertezas.
A modernização e ampliação estratégica das hidrelétricas brasileiras, aliadas ao uso inteligente da engenharia digital, representam mais do que soluções técnicas pontuais: são caminhos sólidos para o fortalecimento sustentável da matriz energética nacional. Ao investir em projetos de repotenciação e digitalização, o Brasil não apenas otimiza o uso dos recursos hídricos existentes, mas também eleva sua segurança energética e competitividade econômica, abrindo portas para um crescimento mais robusto e ambientalmente responsável. A união entre inovação tecnológica e visão estratégica será decisiva para enfrentar os desafios energéticos das próximas décadas.